
Bacharel e mestre em direito e doutor em direito, política e sociedade, o técnico de planejamento e pesquisa do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) Fabio de Sá e Silva é o indicado do governo brasileiro a uma vaga na Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) da Organização dos Estados Americanos (OEA), instituição que representa 35 países do continente americano.
A CIDH é formada por sete comissários eletivos. Este ano, serão renovados três deles. Os novos mandatos serão de 2026 a 2029. A eleição ocorrerá de 25 a 27 de junho, durante a Assembleia Geral da OEA, em Antígua e Barbuda, no Caribe.
Oficializada no fim de março, a candidatura de Fabio de Sá e Silva será apresentada pelo Ministério das Relações Exteriores (MRE) em visitas a embaixadas e aos países integrantes da OEA. São representantes desses países que escolherão os novos comissários. Ao todo são sete concorrentes. Além do Brasil, apresentaram candidaturas Colômbia, México, Honduras, Estados Unidos, Peru e Bahamas.
Em conversa com a Agência Brasil, Fabio de Sá e Silva, que se declara negro, apontou que desigualdades étnico-raciais, de gênero e econômicas são o grande desafio para a garantia dos direitos humanos.
Assim como ele reconhece que o Brasil tem o que aprender com nações da região, o país tem também uma postura de liderança no assunto em questão.
Fabio de Sá e Silva tem histórico de atuação – seja no setor público, seja em instituições acadêmicas e organismos internacionais – nas áreas de direitos humanos, justiça, segurança pública, cidadania e governabilidade demográfica.
De 2004 e 2006, trabalhou no Ministério da Justiça, quando atuou em políticas voltadas à promoção da educação nas prisões e à melhoria do tratamento de pessoas privadas de liberdade.
Sá e Silva está no Ipea – instituição ligada ao Ministério do Planejamento e Orçamento – desde 2009. Entre as realizações no instituto está o Mapa da Defensoria Pública, elaborado em 2013, que ofereceu um diagnóstico inédito sobre a cobertura desse serviço no país.
Sá e Silva também é professor na Universidade de Oklahoma (Estados Unidos) e pesquisador associado do Centro de Profissões Jurídicas da Faculdade de Direito de Harvard (Estados Unidos), além de ter colaborado com organismos como o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud), a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) e a própria CIDH.
Confira a entrevista:
Agência Brasil: Qual o papel principal da CIDH?
Fabio de Sá e Silva: A CIDH engloba 35 países nas Américas, inclusive o Brasil, há mais de 65 anos e tem um mandato amplo. Há um sistema de petições e casos, pelo qual a comissão recebe denúncias de violações de pessoas que sofrem violações, organizações não estatais e dos próprios Estados. Mas a CIDH também tem mandatos mais voltados ao monitoramento da situação dos direitos humanos nos países da OEA, na promoção de boas práticas e no estímulo ao fortalecimento de uma consciência regional de direitos humanos.
O sistema de petições e casos muitas vezes acaba tendo mais visibilidade para o público, quando ficamos sabendo que um estado foi “condenado” (teve sua responsabilidade por violações reconhecida). Mas entendo que a comissão deve agir em todas essas frentes para transformar situações de violações, que em geral têm raízes estruturais e históricas, nos países. Deve trabalhar para cumprir seu mandato de forma integral.
Agência Brasil: O representante brasileiro, cargo para o qual está concorrendo, atua em defesa dos direitos do Estado brasileiro, ou pode ter postura contrária, por exemplo, a favor de condenações em casos que envolvam o Brasil como réu?
Fabio de Sá e Silva: Se eleito, eu não seria um representante brasileiro, mas sim um brasileiro ocupando essa posição para agir com autonomia.
Ainda assim, há normas do sistema que impedem os comissários de terem participação direta e indireta, nos casos e situações envolvendo os países de suas nacionalidades – normas que servem de salvaguarda para que os nacionais não atuem no interesse dos seus Estados, reforçando, assim, a autonomia e independência da comissão como um todo.
Assim, eu não tomaria parte nesses casos.
Agência Brasil: O Brasil já teve condenações, como o caso da Chacina de Acari, no Rio de Janeiro, e, bem recentemente, por violação de direitos de comunidades quilombolas em Alcântara, no Maranhão. Como essas condenações podem contribuir para a política de direitos humanos no Brasil?
Fabio de Sá e Silva: O Brasil, historicamente, valoriza muito o diálogo com sistemas internacionais – o que eu entendo inclusive ser uma grande virtude do nosso país. Essas condenações, e antes delas os próprios casos que correram na comissão e na Corte [Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH), que atua em uma tarefa distinta, judicial, para os casos não resolvidos por meio da atuação da comissão], criam uma oportunidade para o país refletir sobre suas políticas e adotar medidas não apenas para reparar danos causados a indivíduos ou grupos, mas também evitar a repetição das violações.
Por exemplo, a Lei Maria da Penha, que revolucionou o combate à violência doméstica de gênero no Brasil, é resultado desse engajamento. A vítima levou seu caso à comissão, que reconheceu a omissão do Estado brasileiro em protegê-la e ordenou medidas de reparação, o que gerou a aprovação de uma lei e a formulação de uma política que sobreviveu no tempo.
Agência Brasil: O Brasil enfrenta outros processos na CDIH?
Fabio de Sá e Silva: O Brasil tem vários casos em trâmite na comissão e também na Corte Interamericana, embora proporcionalmente menos do que países com sistemas jurídicos e linguísticos de matriz espanhola, que fazem a maioria dos países da região.
Alguns desses casos, inclusive, correm há décadas. Infelizmente, quando se trata de análise de casos, os sistemas internacionais de direitos humanos trabalham em um tempo mais prolongado, seja porque a atuação é “subsidiária” [só se torna possível quando se esgotam os mecanismos internos de resposta àquela violação], seja ainda porque são estruturas sem recursos humanos e materiais adequados para dar conta da demanda.
Isso é mais uma razão para pensarmos nesses sistemas de uma forma ampla, considerando os diferentes mandatos, pois às vezes o trabalho de monitoramento ou a difusão de boas práticas podem dar resultados mais imediatos do que se esperarmos um caso ser concluído.
Agência Brasil: Como o Brasil é visto dentro da OEA em termos de respeito aos direitos humanos, há algum calcanhar de Aquiles do país em matéria de direitos humanos?
Fabio de Sá e Silva: Não há como ignorar que violações de direitos humanos ainda acontecem cotidianamente – como também acontecem em outros países –, mas contam a nosso favor o histórico de reconhecimento internacional de direitos e o engajamento com organismos e sistemas. O Brasil está aberto a escrutínio internacional, a encarar, internacionalmente, a responsabilidade pelas violações de direitos que cometeu ou deixou cometer, e tomar medidas para evitar que essas violações continuem ocorrendo. Por esse histórico, e também por seu tamanho, o Brasil acaba visto como uma liderança.
Em termos de calcanhares de Aquiles, não só no Brasil, mas nas Américas como um todo, o maior deles é a desigualdade – econômica, étnico-racial, de gênero. Porque a desigualdade acaba sujeitando certos contingentes da população a processos sistemáticos de violação.
Por exemplo, o Brasil tem altas taxas de homicídio [violação do direito à vida] e um sistema penitenciário que o próprio STF [Supremo Tribunal Federal] já chamou de “medieval”, onde direitos básicos são negados. Em ambos esses casos, as vítimas de violações são, desproporcionalmente, jovens negros.
Agência Brasil: Olhando para os Estados americanos, o Brasil tem mais a aprender ou a contribuir para o respeito aos direitos humanos no continente?
Fabio de Sá e Silva: No tema internacional dos direitos humanos, as duas noções, aprender e contribuir, estão de mão dadas. Nossa contribuição é bastante notável, temos políticas como o Bolsa Família ou de agricultura familiar que foram amplamente exportadas. Mas também podemos aprender bastante e, para isso, precisamos continuar participando de espaços multilaterais e investir em esforços de integração.
Por conta das barreiras linguísticas, jurídicas e da geopolítica do conhecimento, temos uma certa dificuldade de dialogar com países da América Latina e Caribe, mas esses são os países que têm uma história muito próxima da nossa e que em muitos debates servem como vanguarda. Formulações em direitos ambientais, por exemplo, devem muito à academia e à própria sociedade civil e movimentos sociais desses países – como o indígena, trabalhadoras e trabalhadores do campo, entre outros.
Agência Brasil: O tratamento dado a imigrantes ilegais nos Estados Unidos é uma preocupação prioritária da CIDH?
Fabio de Sá e Silva: O tema das migrações é sempre muito importante em um hemisfério como o nosso, onde a desigualdade a que aludi, assim como a atual crise climática e instabilidades políticas e econômicas, é vetor de mobilidade humana, inclusive dos deslocamentos forçados.
Há uma tendência compreensível de que esse tema seja trabalhado sob uma ótica securitária em muitos países – e também sabemos que cada país tem soberania para adotar suas políticas migratórias, mas os países também soberanamente reconhecem parâmetros mínimos de tratamento decente e dignidade que não podem ser violados.
Nesse sentido, eu diria que a forte relação entre migração e direitos humanos está bem presente na nossa consciência regional de direitos humanos – inclusive com o reconhecimento de que há um direito a migrar e que a condição de migrante não deve privar ninguém de outros direitos civis básicos.
A comissão está acompanhando de perto esse tema em diversos países e, recentemente, chegou a emitir comunicações importantes a respeito.
Agência Brasil: A presença brasileira na CIDH funciona como uma ferramenta de soft power (poder suave, em tradução livre), algo como poder de influência no cenário internacional exercido de forma conciliadora?
Fabio de Sá e Silva: Pode ser um viés da minha parte falar isso, porque sou brasileiro e creio que nosso país ofereceu, em diferentes momentos da história, uma contribuição valiosa para debates internacionais. Mas entendo que, até como decorrência da nossa condição semiperiférica – não temos instrumentos de força a utilizar – carregamos, sim, compromissos com multilateralismo, com equidade e diálogo nas relações internacionais. E que isso pode fazer diferença em momentos como o atual, de muita turbulência e incerteza no mundo.