
A imagem era de um tanque que invadia a rua e ficava próximo de atropelar as pessoas. Mas era só uma das tensões do inconsciente. Depois de mais um dos pesadelos, que teve nesta semana, a professora universitária Marta Nehring, de 61 anos, filha do ativista Norberto Nehring torturado e morto pela ditadura em 1970, teve um momento de alívio e esperança. Ela acordou mais tranquila.
Ela e outras familiares de vítimas da ditadura no Brasil entregaram, nesta quarta (26), à Comissão de Anistia do Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania (MDHC) um “pedido de anistia coletiva” para filhos, netos, sobrinhos e enteados de perseguidos políticos do regime de exceção que foi de 1964 a 1985.
As mulheres do “Coletivo Filhos(as) e Netos(as) por Memória, Verdade e Justiça” buscam um pedido oficial de desculpas do Estado brasileiro e o reconhecimento de que o período dos governos dos militares gerou vítimas ao longo de gerações. A anistia coletiva parte de um compromisso constitucional de reparação integral às vítimas de graves violações de direitos humanos.
No caso de Marta, que perdeu o pai aos seis anos de idade, ela ouviu a história falsa de que Norberto teria se suicidado em um hotel no dia 24 de abril de 1970. Norberto, na verdade, foi assassinado aos 29 anos de idade, conforme foi concluído depois de investigações.
“O corpo dele foi enterrado com um nome falso no cemitério de Vila Formosa (em São Paulo) . Foi montada uma farsa de suicídio”. Foi somente na década de 1990 que a família conseguiu a retificação do atestado de óbito.
Na memória de Marta, as lembranças de um percurso atribulado na infância, as perseguições e invasões policiais, inclusive durante o período de exílio com a mãe (a socióloga Maria Pacheco Morais), que ficou viúva aos 27 anos de idade. Foi na França, somente depois de três meses da morte de Norberto, que a família foi avisada da morte e houve a chamada para reconhecer o corpo.
Educação
A presidente da comissão de anistia do MDHC, a procuradora federal Ana Maria de Oliveira, considerou o pedido bastante apropriado para fazer justiça à história. “Este é um momento significativo e que nós precisamos trabalhar para que mais coletivos venham a propor as suas anistias”, disse.
Ela acrescentou que representantes da comissão pedirão que o Ministério da Educação fortaleça os currículos escolares para formar os professores que possam contar a história da ditadura para esta geração e as futuras. A presidente da comissão entende que houve sensibilização do país com o filme Ainda estou aqui, de Walter Salles, que conta a história do casal Eunice e Rubens Paiva.
Além do momento do filme, ela entende que os julgamentos no Supremo Tribunal Federal (de crimes de tentativa de golpe de Estado e outras violações, como as que ocorreram em 8 de janeiro de 2023) ajudam a compreender o risco à democracia que o País enfrentou.
Demandas
O defensor público federal Bruno Arruda explica que a demanda por reparação por parte de familiares das vítimas da ditadura consiste de um especial simbolismo. Ele diz que os movimentos têm protagonismo nos relatos do que ocorreu com cada família.
“Envolve uma questão de memória muito pessoal terapêutica. Entre as demandas dos grupos, há a requisição das clínicas do testemunho”. Essas clínicas são voltadas para atender familiares de vítimas em uma estrutura do Sistema Único de Saúde (SUS) a fim de oferecer atendimento psicoterapêutico especializado para essas pessoas.
Entre as integrantes do coletivo, a professora Camila Tolosa Bianchi, filha do líder sindical Aderbal Bianchi (que morreu no ano passado) e da também professora Marta Raimundo dos Santos (falecida em 2019) tem a luta pela memória e visibilidade do que a família passou em prisões. Camila exemplifica que a mãe foi presa e duramente torturada.
“Na tortura que ela sofreu, usaram a minha irmã Cíntia, que era bebê de seis meses de vida. Eu recém-nascida em 74, quase fui para a adoção porque minha mãe foi presa”. A família viveu exilada na Argentina na clandestinidade por 10 anos. O pai dela, Aderbal, teve a prisão decretada em maio de 1964.
Simbolismo
Mesmo no exílio, a família foi perseguida pela Operação Condor, que era uma espécie de acordo das ditaduras sul-americanas de perseguir dissidentes políticos ainda que vivessem no estrangeiro. “Nós entendemos que o Estado brasileiro nos deve um pedido de perdão. Sabemos que esse pedido de perdão é simbólico, mas ele é fundamental”, acrescentou.
O grupo ainda estuda as medidas de reparação. “Nós imaginamos que nenhuma escola brasileira deve levar o nome de um estuprador, de um assassino, de um torturador”. Outro pedido é que o judiciário priorize o julgamento dos processos que são conexos aos crimes cometidos pela ditadura no Brasil.
“Pedimos também que o Brasil abra os arquivos da Operação Condor e que faça, junto à Comissão Interamericana de Direitos Humanos, um pedido de perdão com todos os estados signatários dessa operação que foi sanguinária”. Os algozes dos pais de Camila Bianchi nunca foram identificados.
“Ele nunca mais foi o mesmo” No caso da psicóloga e professora Kênia Soares, de 52 anos, ela viu a família inteira ser perseguida depois que a prima participou de um plano de sequestro com motivações políticas durante a ditadura.
O pai, Vital Cardoso, que não tinha qualquer relação com a ação, foi preso e torturado por dois meses, no ano de 1970. Depois de libertado, ele nunca mais foi o mesmo, tamanho o trauma.
“Depois da prisão, nunca mais conseguiu se reorganizar na vida. Abandonou o curso universitário e as artes, campo que era vocacionado”. O pai morreu como gerente de uma ótica localizada no subúrbio do Rio de Janeiro, aos 42 anos, de infarto. “Meu pai não morreu na prisão. Mas eu posso afirmar que esses porões dessa tortura prejudicaram gravemente a saúde dele no auge da sua juventude”.
Hoje, Kênia, que faz parte do coletivo, entende que esse trauma precisa ser melhor acolhido por políticas públicas no Brasil. Por isso, ela busca adesões pela recriação da “Clínica de Testemunhos” em todo o país para atender as gerações que sentem, até hoje, as dores de tantas violações, conforme explica. Se não tratadas, as dores não são superadas, e ressurgem como se fossem no presente, como se fossem na própria pele.